Só Jesus Cristo é o Senhor

Os Grandes Principios Batista

pastor isaltino (Os Grandes Princípios Batistas).

Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, para um congresso doutrinário em Altamira, Pará, novembro de 2009
 
Vimos um pouco da história dos batistas. Vimos também que, a rigor, não temos um fundador da igreja batista, porque várias comunidades batistas começaram a pipocar na época do surgimento da primeira igreja batista no mundo. Nossa origem histórica pode remontar ao pastor John Smith e ao advogado Thomas Helwys, mas eles não criaram nossos princípios e nossas doutrinas. Vimos, também, certa confusão dos primeiros batistas exatamente por causa de não termos uma origem numa pessoa, mas ao redor de princípios. Os princípios já estavam lá e foram entendidos por várias pessoas, em vários grupos. O que tornou difícil remontar a uma origem proclamada num lugar, dia e mês, embora consideremos a igreja fundada na Holanda, em 1609, como a primeira igreja batista. Mas sabemos que há diferenças de interpretações, o que mostra não haver unanimidade, embora a maioria opte como optei.
 
Perguntemo-nos: o que direcionou os primeiros batistas? Por que eles surgiram? Vamos examinar os pontos principais balizadores dos batistas. Eles são a linha por onde andaremos. Examinado nosso passado histórico e nossa teologia, ouso apontar oito pontos principais, dentre vários. São eles: a suficiência das Escrituras, a liberdade de opinião, o batismo consciente de crentes, a segurança eterna dos salvos, as ordenanças (batismo e ceia), o sacerdócio universal de todos os crentes, a igreja local com governo congregacional autônomo, a separação entre os poderes civil e religioso.
 
Temos estas características desde o início de nossa história, no século XVII. Alguém dirá que estes pontos são genéricos e me cobrará mais especificidade. Respondo que o ensino de Jesus e a Bíblia são genéricos, a tal ponto que grupos como Testemunhas de Jeová e Mórmons se dizem cristãos, embora, a rigor, não sejam. Pelo menos, o primeiro, definitivamente, não é, por não crer na divindade de Jesus. Nós é que particularizamos e criamos minúcias. Algumas destas minúcias são necessárias, mas outras são culturais e não podem ser vistas como princípios teológicos universais dos batistas. Temos doutrinas que partilhamos com outros grupos, até mesmo com a Igreja Católica, como o nascimento virginal de Jesus, sua perfeita humanidade e sua perfeita divindade, sua morte e ressurreição, Mas estes princípios são nossas características maiores e deles derivam algumas posturas doutrinárias. A observância ou não destes pontos é responsável por erros que aparecem com roupagem diferente em nosso tempo. Eles se ampliam em outros aspectos. Vamos considerá-los, portanto.
 
  1. A SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS
A Declaração Doutrinária diz: “A Bíblia é a palavra de Deus em linguagem humana. É o registro que Deus fez de si mesmo aos homens”. Paremos aqui, que basta. Isto mostra porque a consideramos suficiente para nos nortear religiosamente. Não basta dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus. Todo grupo herético diz isso, mas estabelece suas normas com base na sua tradição ou mandamentos de fundadores ou líderes que tenham o poder. A Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira é um documento que me soa bem e no qual me situo sem problemas. Mas é um indicativo e não normativo. Ele indica o que cremos e não é uma norma para nós. Nossa normativa são as Escrituras e nenhum outro documento. Ninguém deixará de ser batista por não aceitar a Declaração Doutrinária da CBB. Há grupos batistas que não a aceitam. Mas qualquer batista que negue a Bíblia como Palavra de Deus colocou em xeque seu caráter batista.
 
Seguimos o Sola Scriptura de Lutero. Ele rejeitou que a Tradição e o Magistério da Igreja regessem a teologia da Igreja. Isto nos serve. Temos muito de tradição e de magistério como formadores de nossa teologia. Por mais santo que seja um pastor, ele não pode ser a autoridade final para a igreja, e se discordar da Bíblia, ele está errado. A Bíblia rege nossa doutrina e nossa prática.
 
Os batistas sempre nutriram profundo zelo pelas Escrituras. Quando ela fala, nós falamos. Quando ela cala, nós calamos. Todo material que produzimos e toda postura eclesiológica devem ser avaliados por ela. Não é se deu certo em algum lugar ou se está enchendo alguma igreja em algum lugar, ou se foi proferida por algum teólogo ou pastor consagrado ou famoso, mas se é bíblico. Todas as heresias nasceram de pessoas espirituais e zelosas, e não de pessoas depravadas. Delas se pode dizer o que Paulo disse dos judeus: “têm zelo por Deus, mas não com entendimento”. O entendimento correto das Escrituras é fundamental para uma denominação sadia. E o fato de ela ser suficiente é básico.
 
  1. A LIBERDADE DE OPINIÃO
Na Declaração Doutrinária, “Liberdade de opinião” tornou-se um tópico dentro de “O indivíduo”. Entendo o que foi feito, mas quero abordar o aspecto de liberdade de opinião ou liberdade de expressão. É um legado nosso aos demais grupos evangélicos. Nós o estabelecemos com nosso testemunho e nosso ensino. A monarquia católica ou a teocracia protestante nunca predominariam em meio à consciência batista. A tentativa de se formar uma Genebra calvinista nunca vingaria entre nós. Ainda bem, porque a Genebra de Calvino foi sanguinária. Mas a liberdade de opinião não se restringe ao falar, mas ao decidir sua vida. Cito trecho do livro “Quatro frágeis liberdades”, de Walter Shurden: “A liberdade individual é a afirmação histórica do direito e da responsabilidade inalienáveis de cada pessoa em se relacionar com Deus, sem imposição de credos, interferência do clero ou intervenção do governo civil” (p. 20).
 
Um jovem pastor de 24 anos, Roger Williams encarnou isso em sua vida. Ele começou seu pastorado em Boston, em 1631. Logo desagradou as autoridades locais. Ele recusava o direito dos magistrados em decretarem penalidades jurídicas por infrações religiosas. Williams achava que igreja e Estado deviam ser absolutamente distintos, o que, aliás, os separatistas ingleses defendiam. Ele não criou o princípio, mas levou-o às últimas conseqüências. Roger Williams defendia bem mais que separação entre igreja e Estado. Defendia a absoluta liberdade religiosa. O Estado não tem direito de impor sua fé a ninguém. As pessoas têm o direito de escolher a sua fé e até mesmo não professar fé alguma. Cada pessoa é responsável por sua vida e por suas decisões. O homem não pode ser tutelado nem pela igreja pelo Estado. Por isso também que nunca podemos apoiar ditadura alguma. E toda e qualquer intolerância, seja racial, social, religiosa, ideológica ou política deve ser rejeitada por nós.
 
Expulso de Boston, num inverno rigoroso, e tendo sido salvo pelos índios, Roger Williams fundou uma pequena colônia, na Baía de Narragansett, com algumas de suas ex-ovelhas da Igreja Episcopal, que o acompanharam. No documento de fundação da colônia se definiram como postulados a tolerância religiosa e a liberdade de opinião. Isto é motivo de satisfação para nós, ao mesmo que se torna um lembrete sobre como devemos proceder. A primeira comunidade que estabeleceu como princípio a liberdade religiosa absoluta foi fundada por um homem que veio a se tornar batista e que, em 1639, fundou a primeira igreja batista em solo americano. A liberdade de expressão é um fundamento muito caro aos batistas. A riqueza da Igreja de Cristo está na sua diversidade. Isto se verifica até mesmo na chamada dos doze, feita por Jesus. Eles eram pessoas diferentes. Pescadores, cobradores de impostos, um guerrilheiro (aceitando a tese de Oscar Cullman de que Judas Iscariotes quer dizer “Judas, o homem do punhal”). Um colaboracionista com Roma, o poder dominante, e um revolucionário, contra o poder dominante, portanto. Ambos chamados por Jesus.
 
Esta liberdade de opinião permite que a CBB abrigue diferentes correntes escatológicas. Ela guardou o princípio batista. Outros grupos batistas exigem uma postura específica. Não é o nosso caso. Abrigamos diversas tendências porque este ponto não é fundamental, mas secundário.
 
Liberdade de expressão é uma conseqüência inevitável de não termos um papa ou alguém “infalível”, que todos temos o Espírito Santo, que somos todos falíveis, também. É a aplicação do sacerdócio universal de todos os salvos. Todos temos acesso a Deus, todos temos o Espírito Santo, nenhum de nós é mais conectado a Deus que os demais, para ter o monopólio de Deus. O autoritarismo teológico é uma agressão em si, e também uma agressão à nossa história.
 
É obvio que temos divergências. Aliás, o capítulo X do livro de Faircloth e Torbert, Esboço da História dos Baptistas, se intitula “Livres Para Divergir”. E mostra algumas das divergências históricas entre os vários grupos batistas. Mas como alguém já disse, um bom princípio a se observar aqui é: “Nas pequenas coisas, diversidade; nas questões capitais, unidade; em todas as coisas, caridade”. Divergências no cristianismo aparecem cedo, como vemos em Atos 15, e nas cartas de Paulo, todas elas escritas para resolver problemas na vida das igrejas (talvez as exceções sejam Efésios e Filipenses). Mas é atitude cristã saber viver com divergências. E também uma marca do espírito batista.
 
  1. O BATISMO CONSCIENTE DE CRENTES
Prefiro este termo à batismo de adultos, porque batizamos crianças e adolescentes. Não batizamos bebês. A idéia de que o batismo tinha poder salvador se arraigou lentamente na igreja. Pelo quarto século, o sacramentalismo impôs a ceia e o batismo como sacramentos que deviam ser ministrados para trazerem graça espiritual. O batismo passou a ser algo praticado para se alcançar a salvação. Mas desde o segundo século que a prática de batizar crianças se institucionalizara na igreja. Segundo O Didaquê, obra ainda do primeiro século, a igreja primitiva usava a imersão e a afusão como métodos de batismo. Parece que as crianças (não no Novo Testamento, pois não temos notícia de batismo infantil neste período) eram submetidas à afusão e, mais tarde, à aspersão.
 
A idéia do batismo como sacramento deve nos alertar. Com muita facilidade as pessoas transferem para objetos, gestos e ritos, alguns poderes especiais (no seu entendimento). Muitas vezes sacramentamos formas e ritos. Já ouvi gente dizer que o Cantor Cristão é inspirado e que nunca deveríamos ter um novo hinário, que não é inspirado. Inspirado, para nós, é só a Bíblia. Nenhum material pode ser visto como sagrado. Isto traz problemas, pelos desdobramentos posteriores. O Cantor Cristão é bom, e mais seguro que uma multidão de corinhos aguados, bobinhos, e sem conteúdo que nos empurram em nossos cultos, mas não é inspirado.
 
Os separatistas se esforçaram para haver uma igreja composta apenas de crentes regenerados. Só se pode ser membro da igreja pelo batismo e este só pode ser aplicado a pessoas conscientes do que fazem. Ninguém pode impor o batismo a outro. E a única motivação é a conversão a Jesus. Batizei uma pessoa que fora batizada na Universal. Antes de fazê-lo, quando questionei o porquê de seu batismo, a resposta veio mais ou menos nestes termos: “Eu recebi uma bênção lá na igreja. Aí me disseram que se eu quisesse continuar sendo abençoada eu deveria ser da igreja e para isso teria que me batizar. Então fui batizada para continuar sendo abençoada”. Não é esta a motivação para o batismo. A motivação é a fé em Jesus. Os textos bíblicos são claros: “quem crer e for batizado” (Mc 16.16) e “Que impede que eu seja batizado? É lícito se crês…” (At 8.36-37).
 
A adoção do cristianismo pelo poder civil levou muita gente a se batizar, mas sem nenhuma convicção religiosa. A igreja recebeu membros incrédulos, não regenerados. Mas submetidos a um ritual chamado batismo. Este é um problema quando as linhas entre o poder civil e a igreja são tênues ou são apagadas. A igreja deixa de ser igreja.
 
A concepção mágica do batismo também produziu muitos membros da igreja incrédulos. Há informes da crise teológica de jesuítas que vieram para o Brasil. Acreditavam que batizando o índio, este se converteria, pois o batismo tinha um poder sacramental, mágico-mítico. Mas batizava-se o índio e este continuava antropófago e idólatra. O batismo não regenera. Deve testemunhar a regeneração. O batismo consciente de adultos faz com que a igreja se componha de convertidos. Se hoje, batizando apenas adultos, temos uma quantidade enorme de gente encostada em nosso meio, imagine-se batizando-se bebês recém-nascidos e considerando-os membros da igreja!
 
Esta insistência no batismo somente de crentes fez com que o rótulo de “anabatistas” fosse aplicado a muita gente que nada em comum tinha com os anabatistas. E algumas pessoas o aplicam aos primeiros batistas. Mas este era um termo genérico, como é hoje o termo “evangélico” que para nossa “bem informada” mídia engloba todo mundo que não seja católico. Mas os anabatistas remontam a 1490, sendo Conrado Grebel, um ex-cooperador de Zuínglio, seu fundador. Discordou de Zuínglio por não aceitar o batismo infantil. Com os anabatistas, os batistas tinham em comum o batismo apenas de regenerados, uma Igreja composta apenas de regenerados, a supremacia das Escrituras e a liberdade civil e religiosa. Mas discordavam deles no seu pacifismo radical, sua omissão como cidadãos (alguns anabatistas viam o Estado como demoníaco) e sua proibição de juramentos, inclusive em tribunais, além de pontos de vista teológicos sobre encarnação e hipnose da alma e a necessidade da sucessão apostólica para o batismo. Mas voltemos à visão sobre o batismo consciente de crentes.
 
Neste aspecto do batismo, os batistas devem aos menonitas. De 1609 até 1638, os batistas praticavam apenas a afusão. No contato com os menonitas aprenderam o batismo por imersão. Em 1638, a Igreja de Spilsbury declarou que só aceitaria o batismo por imersão. Em 1644, sete igrejas batistas assumiram uma declaração doutrinária, chamada de “Confissão de Londres”, em que a forma de batismo era por imersão, aceitando a declaração da Igreja de Spilsbury. Desde então, esta vem sendo a prática dominante em nosso meio.
 
  1. A SEGURANÇA ETERNA DOS SALVOS
Esta é outra herança teológica preciosa dos batistas. A Declaração Doutrinária afirma: “O preço da redenção eterna do crente foi pago de uma vez por Jesus Cristo, pelo derramamento do seu sangue na cruz”. Chamo a sua atenção para as expressões “redenção eterna”, “pago de uma vez” e “pelo derramamento de seu sangue na cruz”. A salvação é eterna. Não é temporária nem parcial. O assunto foi resolvido de uma vez por todas na cruz. Cristo não deu uma entrada e deixou as prestações para pagarmos. Pagou tudo, de uma vez. Seu sacrifício foi suficiente, único, irrepetível e perfeito. E o preço pago por ele foi seu próprio sangue. No processo da salvação, não somos o agente, mas Jesus Cristo o é. E sua obra é perfeita. A salvação não depende de nós, mas dele. Ele não rejeita o pecador que vem a ele, nem se arrepende de nos ter salvado.
 
“Mas conheci muita gente que esteve na igreja e hoje está excluída!”, dirá alguém. A antiga Confissão de Fé, substituída pela Declaração Doutrinária, trazia o item XI, “Da Perseverança dos Santos”. Nele se diz: “Cremos que só são crentes verdadeiros aqueles que perseveram até o fim; que a sua ligação perseverante com Cristo é o grande sinal que os distingue dos que professam superficialmente”. Um verdadeiro salvo persevera na fé: “Saíram dentre nós, mas não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que não são dos nossos” (1Jo 2.19).
 
A salvação é obra exclusiva de Jesus Cristo. Nós não a produzimos. Nós a aceitamos. A salvação está relacionada com o caráter do nosso Salvador. Ela não depende de nossos esforços. Quando se pensa na possibilidade da perda da salvação, assume-se que há esforços humanos que podem derrubar o que Cristo fez. E coloca-se a salvação como algo que podemos ter ou deixar de ter com base no que fizemos ou deixamos de fazer. Ela deixa de ser obra da graça. Esta concepção batista torna a igreja uma instituição que, espiritualmente, está segura para sempre, pela sua fé em Cristo. Ela não é clube onde a pessoa entra e sai. Ela é face visível do reino invisível, a ponta do iceberg. Envolver-se com a igreja local, sendo-se regenerado, é estar na Igreja Militante, a Universal.
 
Há coerência batista quando se analisa esta doutrina junto com a do batismo apenas para regenerados. Não há como alguém realmente batizado vir a se desviar. Se a pessoa foi regenerada pelo poder do Espírito Santo e foi batizada, então está segura. Isto nos recorda que o batismo não é para simpatizantes do evangelho, mas para regenerados pelo evangelho. Temos batizado muitos simpatizantes do evangelho, que, um dia, não sendo convertidos, irão embora. Quando o batizado é um regenerado, permanecerá na fé. Se a pessoa morreu para vida anterior, como voltará a viver nela? E é também, para nós, a garantia de que a verdadeira igreja estará preservada, pois será sempre de regenerados. Ao mesmo tempo, é uma advertência para quem se chega a uma igreja batista: está assumindo um compromisso para sempre. Ser membro de uma igreja batista é um sinal, uma declaração, de conversão a Jesus Cristo e a expressão do desejo de se unir ao seu povo. Ao mesmo tempo é uma declaração de que se está assumindo um compromisso com Cristo e o seu evangelho para sempre. A identidade de um batista é forte, aqui: ele é um salvo para sempre e por completo.
 
  1. BATISMO E CEIA COMO ORDENANÇAS E NÃO COMO SACRAMENTOS
Sacramento é o ato religioso que santifica ou confere graça a quem o recebe. Ordenança é o reconhecimento de quem uma determinada ordem foi atribuída a alguém. Há uma diferença muito grande entre os dois. A idéia do batismo e da ceia do Senhor como sacramentos data do quarto século. E veio um desdobramento: por serem ritos mágicos, eles necessitam de uma classe especial de pessoas. Por isso, com o sacramento veio logo o surgimento de um clero. Para a Igreja Católica, os sacramentos são sete: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio. São elementos que conferem graças.
 
Os batistas entendem que Jesus deixou duas celebrações que as igrejas devem observar: o batismo e a ceia. Não transmitem graça, mas são atos de celebração da fé. O batismo celebra e testemunha nossa conversão a Cristo e proclama a disposição de uma vida com ele. A ceia celebra a morte vicária de Cristo e anuncia sua volta. Alguns outros pequenos grupos batistas adotam, ainda o lava-pés. Mas são poucos.
 
Já falei um pouco sobre batismo. Abordamo-lo aqui apenas pelo ângulo de não ser um sacramento. Falo, então, da ceia. A postura católica é a da transubstanciação: o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo. Isso se dá quando do ofertório, na missa, quando o padre oferece os elementos a Deus. Eles são transformados. Por isso, não chame o momento de dízimos e ofertas de “ofertório”. A menos que haja lá algum padre que esteja transformando os elementos no corpo e sangue de Cristo. Os batistas não têm “ofertório”. Têm “devolução dos dízimos”. “Devolução” porque dízimo não se paga nem se dá. Devolve-se. Não é nosso, é de Deus e veio à nossa mão por algum momento.
 
Lutero adotou a consubstanciação: o pão e o vinho não se transformam no corpo e sangue de Cristo, mas Cristo está com a substância. Zuínglio defendia a presença espiritual de Cristo quando da celebração da ceia. Os batistas não aceitam nenhuma destas posições. Entendem ser um memorial. Baseam-se nas palavras de Jesus: “fazei isto em memória de mim”. Batismo e ceia não conferem graças, mas testemunham de nossa fé. Por isso que não chamamos a ceia de “santa ceia”. Não chamamos o batismo de “santo batismo”. O valor da cerimônia não está na sua possível santidade, mas no seu sentido.
 
É preciso reafirmar nossa posição anti-sacramentalista, porque vemos hoje o regresso desta prática, metamorfoseada pelo neopentecostalismo, no meio das igrejas evangélicas. O cenário evangélico atual apresenta um cenário com elementos mágicos e sagrados presentes. Há igrejas distribuindo sal do mar Morto para “abrir caminho”, azeite que teria vindo do monte das Oliveiras sendo usado para ungir as pessoas (há alguma usina de beneficiamento de azeitonas lá?) e até crucifixos feitos da cruz de Jesus (pastores evangélicos, sim!). Generaliza-se a prática de beber água de um copo devidamente benzido pela oração do pastor, tão supersticiosa como a água benta do padre. Uma pessoa alegou que se sentiu bem depois de beber daquela água. É a figura sacramental: o sentimentalismo e a sensação ocupam o lugar da Bíblia. Há um fetichismo em nosso meio: terra santa, areia santa, água santa, sal santo, folha de oliveira santa, etc. No cristianismo as pessoas são santas, e não as coisas. No cristianismo não há lugares e objetos santos.
 
Considerar objetos como sagrados leva a santificá-los. Aí surgem duas irmãs gêmeas: a idolatria e a superstição. Por isso reafirmemos: não temos sacramentos e repudiamos a espiritualização de símbolos e de gestos. O transmissor de graça é o Espírito Santo. Ele habita em nós, se somos convertidos. Se alguém não é, pode se afogar nas águas do Jordão, ficar com barriga d’água de tanto beber água ungida pela oração do pastor, que isso não adiantará nada. A fé deve ser posta em Deus e não em coisas nem em gestos nem em ritos. Um batista que preze sua identidade não se envolverá com o fetichismo neo-sacramentalismo pentecostal.
 
  1. O SACERDÓCIO UNIVERSAL DE TODOS OS SALVOS
Desde o início, os batistas partilharam com os vários grupos insatisfeitos com o protestantismo e com os separatistas, os insatisfeitos da Igreja da Inglaterra, a rejeição de um clero. Isto é o que se chama “a doutrina do sacerdócio universal de todos os salvos”. Num certo sentido, não temos sacerdotes entre nós. Isto no sentido de alguém com mais acesso a Deus do que os demais. Noutro sentido, todos somos sacerdotes porque todos temos acesso a Deus, sem necessidade um mediador humano.
 
O pastor não é um sacerdote. Sua oração vale tanto, aos olhos de Deus, como a oração do zelador da igreja, desde que este seja crente. A oração do crente é ouvida por causa da graça de Deus, da mediação de Jesus e da intercessão que o Espírito faz por nós, junto à Trindade. A identidade batista é fortemente marcada por esta concepção teológica: o sacerdócio universal de todos os salvos, em conseqüência do livre acesso que todos nós temos à presença divina.
 
No entanto, esta doutrina tão valiosa está sendo diluída em nosso meio. Isto sucede por causa do entendimento de que temos um clero e um laicato. Todos nós somos ministros, pois todos somos servos. E todos somos leigos, porque todos somos povo (é este o sentido da palavra “leigo”, alguém do povo). Não temos clero nem laicato, como batistas. Somos todos ministros e somos, todos, povo. Mas isto tem sido esquecido, porque, cada vez mais, a igreja mergulha no Antigo Testamento e não no Novo. Usamos os termos do Novo com a conotação do Antigo. Muita gente prega o Antigo Testamento sem analisá-lo pelo Novo Testamento. Assim, o pastor do Novo Testamento passa a ter a conotação do sacerdote do Antigo Testamento. É o “ungido”, o detentor de relação especial com Deus que os outros não têm. Só ele pode realizar certos atos litúrgicos, como se fosse o sacerdote do Antigo Testamento. Por exemplo, batismo e ceia só podem ser celebrados por ele. Assumimos isto, mas não é uma exigência bíblica. Convencionamos isto.
 
No meio carismático isto é mais forte. Os pastores tornam a igreja dependente deles. Só eles têm a oração poderosa, a corrente de libertação só pode ser feita por eles e na igreja, só eles quebram as maldições, etc. O sentido teológico do sacerdote hebreu permeia o sentido teológico do pastor neotestamentário. Isto convém ao pastor neopentecostal. Ele se torna um homem acima dos outros, incontestável, líder que deve ser acatado. Tem uma autoridade espiritual que os outros não têm. Ele tem uma linha vermelha com Deus. Ora, se há algo que aprendemos sobre a liderança nos dois Testamentos, é que o Antigo elitiza a liderança e o Novo a democratiza. Para o neopentecostal, o Novo Testamento, a mensagem da graça e a eclesiologia simples, despida de objetos, palavras e gestual sagrados não são interessantes. Assim, ele se refugia no Antigo Testamento. Por isso há igrejas evangélicas com castiçais de sete braços e estrelas de Davi no lugar da cruz. Outras desfraldam a bandeira de Israel (e omitem a brasileira), guardam festas judaicas, e têm incensários em seus salões de cultos. Há evangélicos que parecem frustrados por não serem judeus. A liturgia pomposa do judaísmo é mais atraente e permite mais manobra ao líder que se põe acima dos outros. E com isso, os membros da igreja são os ajudantes do obreiro.
 
Em Portugal, um diácono, conversando comigo, queixou-se da mentalidade católica infiltrada nas igrejas batistas. O pastor era um sacerdote e os diáconos, seus coroinhas. No meio neopentecstal, parece que o pastor é um executivo espiritual e os membros, os pagadores de contas. Lutero tentou apagar o conceito católico de que a Igreja era a liderança, o clero. Para ele, igreja era o povo e não a instituição, representado por seu clero. Ele não gostava da palavra kirche para igreja, porque enfatizava a instituição. Preferia gemeinde, que dá a idéia de comunidade. Ele queria a ênfase no povo. O povo é a igreja e o povo é sacerdote. Não há pessoas credenciadas para terem mais acesso a Deus, em detrimento de outras. Não há sangue azul espiritual nem uma plebe espiritual. Deus trata seus filhos por igual, por causa da pessoa de Jesus Cristo
 
Tudo isto pode ser resumido no expediente de um boletim de uma igreja batista dos Estados Unidos. Lá constava: “Ministros da Igreja: todos os crentes. Auxiliar dos ministros: o Pastor da Igreja”. Deus não deu a tarefa de fazer a obra aos pastores, a não ser a tarefa de serem pastores. A tarefa de fazer a obra foi dada à Igreja como um todo. E o Espírito foi dado a todos e não apenas aos pastores.
 
  1. A AUTONOMIA DA IGREJA LOCAL
Este é outro princípio batista inegociável. E é onde devo contextulizar um pouco mais porque temos problemas sérios nesta área. Entendo que vivemos um tempo bem diferente do vivido há 20 anos. As estruturas denominacionais passam por um processo de desgaste junto às igrejas. Sua imagem está afetada. Isto é conseqüência até mesmo de um dado cultural, a pós-modernidade, momento social em que vivemos e em que as estruturas são questionadas e deixadas de lado, e o individualismo é cada vez mais acentuado. Para piorar, em algumas de nossas instituições denominacionais houve má gerência, e isto atingiu as demais. Em outras, houve açodamento de pessoas que confundiram as coisas e conseguiram, com suas atitudes, criar uma postura refratária por parte das igrejas. Zelosas pelo seu trabalho, algumas pessoas começaram a pressionar as igrejas e a reclamar das não colaboradoras, muitas vezes insinuando não serem batistas ou serem desengajadas da doutrina batista por não contribuírem financeiramente para a instituição. Em outras vezes, a luta por poder, nos bastidores, em nada difere da luta que se vê no mundo. Esta confusão, para mim, se deu porque se ignorou o fato de que a estrutura é serva das igrejas e existe em função delas e não o oposto. Nem mesmo chamo nossas instituições de denominação porque denominação, no meu entendimento, são as igrejas e as doutrinas que elas sustentam. Chamo de estrutura e as vejo como pára-eclesiásticas, ou seja, elas existem para caminharem ao lado das igrejas. Por isso, entendo que as estruturas precisam rever seus métodos e seu discurso. Não devem cobrar das igrejas, mas mostrar sua competência, sua administração com lisura, e como estão levando a obra das igrejas à frente. Parece-me surrealista que alguns vejam as igrejas como adversárias da denominação. Elas são a denominação!
 
As igrejas têm diminuído sua colaboração para a estrutura, tanto em finanças como em envolvimento. Por isso, vez por outra se lêem artigos em que alguém reclama da autonomia da igreja local e critica as que não estão cerrando fileiras com a estrutura. Seria bom fazer com que as igrejas todas assumissem o programa da estrutura e bem como os ônus decorrentes da funcionalização do programa.
 
A autonomia leva à pulverização, mas a centralização leva à uniformidade nos erros. Cito um trecho de um batista insuspeito, José dos Reis Pereira. Poucos batistas foram tão engajados na obra como ele. Certa vez, em uma carta, ele me disse que estava com 24 atribuições denominacionais. Reis Pereira foi uma vela que se gastou dos dois lados. Eis o texto: “Os Batistas Gerais decaíram à proporção em que uma forte tendência centralizadora triunfava entre eles. Vitoriosa essa tendência a autonomia das igrejas locais foi sacrificada. E é um outro princípio batista, esse da autonomia da igreja local” (Breve História dos Batistas, p. 81). Centralizar o poder e fortalecer o centro não melhorará a situação. Reis diz que a história já provou isso. Deve-se fortalecer e melhorar a base, que são as igrejas. Se estas forem fortes e sadias, a denominação será forte e sadia.
 
Não se pode negar a autonomia da igreja local, até mesmo porque o Novo Testamento só mostra uma instituição, que é ela, e desconhece as que criamos. O que criamos não é antibíblico, mas é abíblico. Não é errado, mas existe para funcionalizar e vitalizar a igreja local. O que devemos fazer é mostrar que as igrejas do Novo Testamento viviam em cooperação, que se ajudavam, como Paulo mostra em suas cartas. Autonomia e cooperação não são antônimos. As igrejas se engajavam em projetos comuns, mas tudo partia delas. Até mesmo o envio de missionários. Os missionários eram enviados pelas igrejas e eram missionários das igrejas e nunca enviados por uma instituição. Sei que os tempos são outros, as circunstâncias culturais são outras, mas me parece que muitas vezes olhamos pelo lado errado do binóculo. A pedra de toque do processo batista é a igreja local. Somos congregacionais desde nossa origem: o governo pertence à congregação local e ela não está sujeita a nenhuma outra instância. E cooperação, sim. Mas sacrifício ou abandono da autonomia da igreja local, nunca!
 
Esta doutrina nos permite declarar que a maior e mais rica igreja batista vale tanto quanto a menor e mais pobre. E o que se faz em nome dos batistas precisa do aval moral das igrejas para ter credibilidade entre elas. Não se trata apenas de autonomia da igreja local, mas de sua soberania. As estruturas precisam se compatibilizar com as igrejas. Até mesmo por um fator muito simples: precisam delas para sobreviver.
 
  1. A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO
Este item amplia a liberdade da igreja. Ela não está subordinada ao Estado e ela e o Estado têm esferas diferentes. A igreja é cidadã deste mundo e sujeita-se a leis de justiça e de bom senso. Mas deve dizer: “Mas Pedro e João, respondendo, lhes disseram: Julgai vós se é justo diante de Deus ouvir-nos antes a vós do que a Deus” (At 4.19). A lealdade última da igreja é para com Deus e sua Palavra. Sua pátria mais amada é a celestial. O Estado também está sob a lei da justiça divina. No Antigo Testamento, Iahweh escolheu Israel, mas é Senhor de todas as nações e toda a terra. Devemos nos lembrar disto.
 
Na Escandinávia, os pastores luteranos são pagos pelo Estado. No Brasil, constantemente, verbas públicas são usadas para recuperar igrejas católicas, sob desculpa de patrimônio arquitetônico ou cultural. Mas são lugares de cultos. Isto é contra nosso princípio de um Estado leigo, que não deve investir em nenhuma religião nem beneficiar nenhum culto.
 
Diferentemente de grupos anabatistas e outros radicais do século 16, os batistas não questionam o Estado por ser Estado. Mas não o sacralizam. O Apocalipse mostra o Cordeiro contra um Estado que deseja ser Deus. Nosso compromisso é com a justiça, com a honestidade e com a dignidade humana. Podemos nos rejubilar de termos em nossa história um Prêmio Nobel da Paz, o Pr. Martin Luther King Jr, assim agraciado pela sua luta pelos direitos dos negros norte-americanos. Mas, quando a turma de formandos do Seminário do Sul, em 1968, o tomou como seu paraninfo, alguns dos missionários americanos que lecionavam no Seminário, bem como parte da cúpula batista brasileira, ficaram indignados com os alunos. Sintonizados com o regime militar, achavam que King era um comunista, um agitador. Que miopia! E perda de senso de história!
 
Uma igreja batista não é da direita nem da esquerda nem mesmo do centro. É de cima. Seus valores são espirituais e celestiais. Uma igreja batista faz parte da igreja de Cristo, que é multirracial, multi-étnica, multigeográfica. Sou brasileiro e não me envergonho disto. Digo como Fernando Pessoa: “minha pátria é a língua portuguesa”, ou seja, tenho uma identidade lingüística. Amo meu idioma, dizendo como Olavo Bilac: “em que da voz materna ouvi: ‘meu filho’”. Foi na língua portuguesa, no Brasil, que ouvi minha mãe, Nelya Werdan, uma filha de suíços, me chamar de “filho”. Foi neste país, o Brasil, que duas famílias estrangeiras, os portugueses Gomes Coelho e os suíços Werdan Suhett me deram origem. Mas, mais que brasileiro e descendente de portugueses e suíços, sou cidadão do reino do céu. Os princípios do reino celestial devem reger minha vida.
 
Deus não é brasileiro nem tem nacionalidade alguma. Devemos ser patriotas, mas devemos discordar do Estado quando este invade área que não é sua. Não lhe compete nos ditar fé ou perspectivas religiosas. Pagamos impostos, servimos ao exército, damos nossa parcela para este país. Mas não o sacralizamos nem o deificamos. O culto ao Estado produziu a aberração chamada “Cristãos Alemães”, que queria uma igreja germânica, de raça pura. Mas não admitimos a ingerência do Estado em nossa vida. Nem transigimos nossos padrões por causa do Estado. As casas de prostituição pagam taxas e são estabelecidas legalmente, mas a prostituição é pecado. O que é legal nem sempre é moral. O casamento de homossexuais pode ser tolerado civilmente, mas é pecado. Uma batista deve dizer como Lutero: sua consciência é cativa da Palavra de Deus.
 
Somos cidadãos como todos os demais e não devemos esperar tratamento especial. É errado igrejas batistas pedirem ônibus às prefeituras e órgãos públicos para fazerem piqueniques. Se não têm dinheiro para alugar um ônibus, não andem de ônibus! Vão a pé ou não façam piquenique! Se nos incomoda ver dinheiro público sendo usado para levantar estátuas a Iemanjá em cidades da orla marítima, deveria nos incomodar também o uso de dinheiro público para monumentos à Bíblia. O poder civil não pode patrocinar nenhuma religião! Nem a nossa!
 
Nunca fomos subversivos. Mas não podemos ser coniventes com um Estado desumano, corrupto, desvalorizador do homem. Nosso norte são os valores da Palavra de Deus. Olhamos para eles e seguimos nossa jornada. O que se desvia deles, isso recriminamos. Não é se nos beneficia, mas se é um princípio bíblico.
 
CONCLUSÃO
Terminei a listagem e comentários dos princípios batistas que me parecem os pilares de nossa postura. Podem ser óbvios, mas assumi-los ou negá-los trazem desdobramentos, que também procurei aqui mostrar. A questão mais importante me parece ser esta: temos um passado nobre. Não surgimos de um racha por causa de liderança, de voracidade por dinheiro ou por esquisitice. Surgimos ao redor de princípios. Que nossos ancestrais sustentaram por séculos. Muitos deram suas vidas por eles. Hoje, observá-los parece fácil. Mas nem sempre o fazemos. Por conveniência, porque nos atrapalham, porque impedem alguns planos nossos. Mas são princípios batistas que formam nossa identidade. Que nunca os abandonemos e que nunca percamos essa identidade.

 

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Redação: Pastor Geciano Vieira